Tipos de violação da boa-fé objetiva

Nosso ordenamento jurídico prevê duas espécies de boa-fé: a subjetiva – refere-se a dados internos, psicológicos, elementos diretamente ligados ao sujeito (art. 186, CC); e a objetiva – relativa a um comportamento, um dever de conduta (art. 187, CC).

Em relação à boa-fé objetiva, sua violação implica em abuso de direito, os quais são retratados em algumas sub-modalidades, quais sejam:

  • Venire contra factum proprium

É a proibição de comportamento contraditório, também chamada de Teoria dos Atos Próprios. É uma modalidade de abuso de direito caracterizada pela prática de um comportamento, ou seja, pelo exercício de um direito afrontando uma expectativa criada de que aquele direito não seria exercido.

No venire o titular procura exercer um direito seu depois de criar a expectativa de que aquele direito não seria exercido. Difere da proibição de alegação da própria torpeza, pois esta é fundada na boa-fé subjetiva, enquanto o venire funda-se na boa fé-objetiva. Também não se confunde com a reserva mental porque a reserva mental está no campo do descumprimento contratual, do inadimplemento contratual.

Exemplo de Venire na Jurisprudência (RE 86787/RS):

Na década de 70, uma mulher rica se apaixona por um homem muito mais novo do que ela. O casal conta com a resistência da família dela. Eles vão até o Uruguai e se casam, pois lá o regime de bens oficial é o de separação de bens (o que é dela não comunica com ele). Voltam para o Brasil e comunicam que se casaram. Tempos depois, eles requerem a homologação do casamento no Brasil e, em sendo assim, o regime sai do uruguaio e vai para o regime brasileiro que, na época era o regime universal. Eles não revelam a conversão a ninguém e todos sabem que estão casados pelo regime da separação. Ela faz uma doação a ele e ele monta uma empresa para dar apoio às empresas dela. Em pouco tempo ele vai à falência e os credores o executam. Acaba o patrimônio dele. Os credores tentaram, então, executá-la. E ele defende dizendo que o patrimônio dela não poderia ser executado porque eram casados no regime de separação e comprovam o casamento no Uruguai. Com isso, a Justiça termina protegendo o patrimônio dela por conta das alegações. Sem ocupação, ele depois resolve procurar um outro trabalho. Ela já não gosta mais da ocupação que ele arrumou e pede a separação. Ele contesta a ação dizendo assim: “quer separar, a gente separa, só que tem que dividir todo o patrimônio, porque somos casados no regime de comunhão universal”. E aparece com a homologação do casamento no Brasil. O Supremo, nesse caso, aplicou o venire contra factum proprium, dizendo: de fato, você teria direito à meação, mas você criou em todos e nela a expectativa de que na sua cabeça vocês eram casados pelo regime da separação. Ato ilícito objetivo caducificante. Ele perdeu o direito de exercer o seu direito à meação.

  • Supressio ou Verwirkung e Surrectio ou Erwirkung

Na supressio suprime-se a possibilidade de o titular exercer aquele direito porque ele criou em alguém a expectativa de que esse alguém o exerceria em seu lugar (surrectio). Na mesma medida em que ocorre supressio para o titular, ocorre surrectio para o terceiro. É, pois, a perda de um direito não exercido pelo seu titular durante um lapso temporal considerável, que, por conta da sua inação, perde sua eficácia. Essa confiança gera, em contrapartida, um direito à outra parte, versando sobre a impossibilidade do exercício daquele direito.

Exemplo: Art. 330, CC –O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.

Eu celebro um contrato com Paulo, que mora em Natal. Eu sou o credora, moro em Fortaleza. O contrato diz que o devedor deve cumprir as obrigações no domicílio do credor. Paulo tem que sair de Natal todo mês para cumprir a obrigação. Todavia, nesse contrato de 36 meses eu digo: não precisa vir porque eu vou a Natal todos os meses a negócios. Então, quando eu for, eu recebo o pagamento. Já passaram 30 meses e durante esse tempo todo, embora o contrato diga que o lugar do cumprimento é o do domicílio do credor, eu sempre me desloquei ao domicílio do devedor para receber o pagamento. No 30º mês, eu digo a ele que vou exercer o meu direito que está no contrato: exigir o pagamento em Fortaleza. E ele diz: agora não porque seu comportamento reiterado gerou uma renúncia: supressio. Supressio para o credor e surrectio para o devedor. É o art. 330, do CC.

OBS.: A tolerância que gera a supressio deve ser reiterada. É aquilo que desperta confiança. Por isso que nem toda tolerância pode implicar em venire ou em supressio.

  • Tu quoque ou Estoppel

É o venire contra factum proprium aplicado no âmbito das obrigações contratuais. É uma limitação de comportamento entre contratantes. Se o contratante exerce o direito seu, violando a expectativa que ele criou, está praticando tu quoque e, portanto, ato ilícito. Distingue-se do venire, pois não visa tutelar a continuidade de um comportamento, mas apenas a sua manutenção para preservar o equilíbrio contratual, o caráter sinalagmático das trocas.

O tu quoque vai estar presente sempre, porque diz respeito a abuso do direito, mesmo que o contrato não admita a exceptio non adimpleti contractus (esta é exclusiva dos contratos onerosos e bilaterais). E os contratos que não admitem a exceptio non adimpleti contractus são os unilaterais gratuitos ou os que possuem cláusula solve et repete. Esses não admitem a exceptio, mas o tu quoque está ali porque o tu quoque é o abuso do direito no que tange às obrigações contratuais.

  • Duty to mitigate the loss

É o dever de mitigar as próprias perdas. Refere-se ao abuso do direito do credor.

O credor deve adotar providencias para facilitar o cumprimento da obrigação e toda vez que o credor atrapalha, de algum modo complica o cumprimento da obrigação, ele está prejudicando diretamente a si e, indiretamente ao devedor, porque está agravando a situação do devedor.

Acolhendo o duty to mitigate the loss, temos o Enunciado 169 da Jornada de Direito Civil – Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo.

Exemplo: Recálculo das Astreintes (multa diária)

Caio teve o nome inserido indevidamente no SPC. Ele vai à Justiça e o juiz manda tirar, sob pena de multa diária de 1.000 reais. Mas o réu não cumpre a obrigação. Passa 1 semana, 2 meses. Caio fica esperando, não comunica o descumprimento da obrigação ao juiz e deixa passar 2 anos. Decorrido esse tempo (2 anos depois), a dívida já está na casa de 1 milhão de reais e Caio nunca comunicou ao juiz. Sabe o que ele vai fazer agora? Vai executar a multa e ao fazer isso, estará abusando do dinheiro que não tinha natureza indenizatória, mas tinha natureza inibitória. Se tinha natureza inibitória era para evitar o descumprimento e se o réu descumpriu, qual era o dever ético de Caio? Comunicar ao juiz quanto tinha 15 dias, 1 mês, 1 semana, um tempo razoável. Se esperou 2 anos e agora executa, está fazendo de forma abusiva. O juiz deve, nessa hipótese, recalcular as Astreintes. Ele diminui o valor da multa e, com isso, refaz o título executivo para que a execução não seja abusiva e não viole a natureza inibitória do título.

  • Substantial Performance

É o abuso do direito de o credor ao requerer a rescisão do contrato quando o descumprimento de obrigações pelo devedor foi mínimo, irrisório. Em tais casos, o credor não perde o direito ao crédito; perde o direito de rescindir o contrato.

São efeitos da rescisão de um contrato: perdas e danos (multa) – normalmente já são previamente limitadas por cláusula penal; juros e correção monetária; honorários e custas.

Exemplo: Um contrato de financiamento de automóvel em 24 parcelas. Dessas parcelas, o devedor pagou 21. Deixou de pagar as restantes. Ficou desempregado. Não pagou 3 de 24 parcelas. Se não pagou, descumpriu. Há rescisão contratual nos seus efeitos. O banco tem direito de ajuizar rescisão de contrato pedindo a devolução do carro. O devedor devolve o carro e banco devolve-lhe o dinheiro. Entretanto, banco devolve, mas antes faz alguns abatimentos na forma da lei. Art. 389. Vai reter a multa, cláusula pena, os juros e correção, honorários e custas e taxa de ocupação (uma espécie de aluguel). Quando há o somatório de tudo, significa que o devedor devolve o carro e continua devendo. Tudo isso porque ele deixou de pagar 2 ou 3 parcelas. É direito do contratante requerer a rescisão do contrato nesse caso, mas esse direito está sendo exercido abusivamente.

  • Violação Positiva de Contrato ou Adimplemento Fraco ou Ruim

Além de cumprir as obrigações contratuais, os contratantes devem também cumprir a boa-fé objetiva e os seus deveres anexos, os quais são: dever de informação, de segurança, de lealdade. São deveres éticos. No caso, não há um descumprimento negativo, mas positivo do contrato.

Exemplos:

TV de Plasma – Em 2006 todo mundo comprou para ver a Copa. Quem vendeu, vendeu a TV em perfeito estado e não contou que no sinal de TV analógico a imagem do plasma deformava. O vendedor entregou a TV em perfeito estado, no prazo, mas descumpriu o dever de informação.

Outdoors – Uma empresa queria fazer uma propaganda em placas de outdoor de um produto muito caro, voltado para o público A. Vinte placas foram espalhadas pela cidade. E a empresa, mesmo sabendo que o produto era dirigido à classe A, espalhou as placas pelos subúrbios e favelas. Cumpriu o contrato porque colocou as 20 placas, mas violou positivamente o contrato.

Casos de violação positiva de contrato estão sendo admitidos pelo STJ.

 

Direito Civil por Cristiano Chaves

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